Will Smith protagoniza filme da época da Guerra Civil, dirigido por Antoine Fuqua e baseado em fotografia histórica de homem escravizado.
Eu achei que nunca veria Will Smith fazendo um filme sobre escravidão.
Não somente por uma constatação pessoal acerca da carreira do ator até então. Não somente — e considerando admirável este aspecto da sua estratégia — porque ele desenhou sua ascensão mirando aqueles mesmos papéis que dariam a Tom Cruise. Ele focou em ser o super astro de blockbusters, o rosto único de filmes universais capazes de agradar a plateias no mundo inteiro, o ator pelo qual se paga ingresso somente pelo conhecimento de que lançou um novo filme.
E, de verdade, isto é muito, muito intenso. E, sim, é preciso racializar este discurso para chegar onde eu quero chegar. Porque a pergunta é simples: quantos outros superastros negros, capazes de gerar interesse a uma obra, só com seu rosto isolado em um pôster, nós conhecemos? Na minha opinião, em ordem decrescente, e considerando que alguns deles já estão quase se retirando da carreira, temos (não incluindo Will Smith): Denzel Washington, Forest Whitaker, Samuel L. Jackson, Michael B. Jordan, Eddie Murphy, Mahershala Ali. E tínhamos Chadwick Boseman, que provavelmente estaria ocupando um segundo lugar nesta lista.
E perceba que mesmo Anthony Mackie encarnando Falcão no multibilionário universo da Marvel não pode entrar nesta lista, ao contrário de qualquer ator branco interpretando um herói menos expressivo do mesmo universo. Note que Wesley Snipes, então o maior astro negro dos anos 90 e início dos anos 2000, não conseguiu a mesma longevidade que astros brancos do mesmo período. É, eu sei que é preciso considerar escolhas pessoais e profissionais não tão bem-sucedidas.
Mas você entende, certo?
Entende que um sujeito como Will Smith, ao construir sua carreira, sendo o representante de um grupo tão, mas tão pequeno — astros negros capazes de gerar bilheterias bilionárias — precisa ser muito preciso na escolha de seus filmes?
Já ouviu falar do ditado "pessoas negras não podem errar?"
Certamente Will Smith, assim como eu, já ouviu muito. E, ao buscar a excelência, ele definitivamente mais acertou do que errou. Nem vamos entrar em conta na sua carreira musical, que envolve o notório fato de ser o primeiro artista de rap a ganhar um Grammy.
Em seu trabalho como ator, Smith protagonizou uma das séries de maior sucesso nos ano 90, fez dezenas de blockbusters e, mesmo quando decidiu atuar em filmes menos comerciais, em que podia nos convencer profundamente da sua qualidade dramática, também foi capaz de atrair uma multidão para os cinemas.
Que o diga À Procura da Felicidade, drama intimista de 2006, aclamado com nota 8 no IMDB e adorado por 87% da audiência do Rotten Tomatoes, que entrega, indiscutivelmente, uma das maiores performances da sua carreira.
Smith realmente traçou um plano ambicioso, que era o de se tornar o maior astro de Hollywood. Ele realmente estudou os filmes mais lucrativos da história do cinema, para encontrar o que eles tinham em comum e criar sua própria fórmula de sucesso que o ajudasse na hora de selecionar seus próximos projetos.
E eu achei que nunca veria Will Smith fazendo um filme sobre escravidão porque ele literalmente falou: "Eu sempre evitei fazer filmes sobre escravidão. No início da minha carreira, não queria mostrar pessoas negras por este ângulo. Eu queria ser um super-herói. Então queria mostrar a excelência negra junto de meus colegas brancos. Queria interpretar os papéis que normalmente dariam a Tom Cruise."
Por que Will Smith resolveu estrelar Emancipation, então? Porque, definitivamente, este não é um filme "sobre escravidão". A nova empreitada de Will Smith talvez seja o que de mais próximo veremos de um filme de ação — tendo a escravidão como pano de fundo. E é aí que as coisas se complicam.
O fato é que às vezes fica difícil compreender se esta foi uma escolha intencional do diretor, Antoine Fuqua, uma vez que o longa lançado pelo AppleTV+ transita entre o drama de prestígio — horrorosamente cruel, em toda a crueldade presente em retratar os massacres da escravidão —, o suspense, o heroísmo de um thriller de sobrevivência e, definitivamente, filme de ação.
Então, espere menos paralelos com 12 Anos de Escravidão e mais com Django Livre — exatamente o filme que Will Smith recusou —, mas sendo tratado com seriedade e sem as peripécias formais à la Tarantino, é claro.
O que parece óbvio é o fato de Emancipation ser uma escolha muito intencional para Will Smith. Pois o filme carrega, em teoria, todos os atributos para que — em um mundo pré-tapa em Chris Rock na cerimônia do Oscar —, entregassem uma estatueta nas então admiradas mãos de Smith. E num mundo onde o tapa em Chris Rock aconteceu, servisse de redenção para a sua imagem: o ator dispensa seu tradicional visual de cabelo e cavanhaques na régua para nos entregar a interpretação de um homem escravizado, Peter, obviamente em condições deploráveis, em visual bagunçado e marcado por cicatrizes horríveis, uma vez que o personagem é inspirado no escravizado conhecido como Gordon ou Whipped Peter ("Peter Chicotado", em português), que teria escapado de uma plantação da Louisiana em 1863, ganhando liberdade quando chegou ao acampamento do Exército da União perto de Baton Rouge.
Há esforço na atuação, há mudança no tom de voz e há uma transformação física que entrega profundidade dramática e dor mesmo na falta de medo em encarar os homens brancos nos olhos. Basta um olhar e vemos o personagem de Will Smith pronto para defender seus amigos escravizados, ainda que ciente dos castigos indizíveis decorrentes desta ousadia.
Mas então, é uma biografia? Não. O que Smith e Fuqua fazem é se utilizar de um símbolo universal da escravidão, que historicamente foi um rebelde, para nos entregar um personagem que carrega atributos que são caros ao ator. Ele é quase um Rambo vagando por pântanos e lutando contra caçadores de escravos e crocodilos, mas ele é também um pai e marido amoroso, que já no início vemos acariciando os pés da sua esposa Dodienne (Charmaine Bingwa), cercado pelos filhos. Tementes a Deus, crentes que o Senhor os livrará, em algum momento, de viverem sob o jugo daqueles homens brancos. Porém, não importa que seja 1863 e que Abraham Lincoln tenha assinado a Proclamação da Emancipação, o que, em tese, deveria garantir sua liberdade. Peter é separado de sua família, arrastado por cruéis homens de dentes sujos e pele clara, e vendido ao Exército dos Confederados como mão-de-bra para a construção de uma ferrovia.
Uma vez que é vendido, o resiliente Peter logo vira vítima da atenção do notório e sádico caçador de escravos Fassel (Ben Foster). E sob sua presença, e de seus cães assassinos, sempre rondando os escravizados em seus terríveis trabalhos com gigantes toras de madeira e dormentes, não resta a Peter a não ser a atitude submissa. Só que esta muda totalmente à menor distração de uma dupla de escravizadores: não obstante as condições subumanas em que é mantido, dormindo sentado e acorrentado, se alimentando parcamente, Peter rapidamente se torna um lutador ágil e corredor veloz pronto para se esgueirar pelos pântanos e árvores, dando à Fuqua o que ele quer e construiu em sua carreira — um herói de ação que, ao optar por este enfoque, não entrega ao Peter a humanização que sua desconhecida história não nos conta em verdade. Nada sabemos sobre Peter além de sua indubitável devoção a Deus e à família que ele quer voltar a encontrar. Não vemos nem flashs de lembranças com sua esposa, não nos aproximamos do que pode ser a personalidade e no que se torna alguém fadado a sobreviver servindo forçosamente aos outros. Ao acelerar em direção a um filme de ação, Fuqua faz o que os brancos escravizadores faziam com seus escravizados, que é desumanizar uma pessoa. Peter se torna um fugitivo perspicaz, repleto de táticas dignas de um membro de uma força especial de sobrevivência. Um personagem que, como se não bastasse, ainda é definido por outro como alguém que pode "sobreviver a coisas que a maioria dos homens não consegue".
Não é isso o que se pensa ao ver uma imagem do Peter histórico. Mas infelizmente é o que se espera quando se lembra que Antoine Fuqua tem em seu portfólio filmes como O Protetor, O Culpado, Atirador e Nocaute: filmes nos quais a força bruta se sobrepõe ao desenvolvimento de personagem e que também querem crer que imagens arrebatadoras podem ser diretamente traduzidas em emoção. A bem da verdade, imagens arrebatadoras não faltam. O filme é pródigo em uma cinematografia muitas vezes impressionante, com sua dessaturação nos trazendo quase tons de prata. Os planos com drones sobrevoando os pântanos são incríveis, mas nada disso é suficiente para livrar um filme que não faz o melhor com o tanto de possibilidades que tinha em mãos.
O Fuqua de Dia de Treinamento traria profundidade de intenções e revelaria a alma mesmo de um personagem insondável à primeira impressão, como o fez com o Alonzo de Denzel Washington. E certamente o Will Smith de Um Homem Entre Gigantes não permitiria que seu personagem, um símbolo dos horrores da escravidão, fosse reduzido a um Jason Bourne de pés descalços e pele açoitada. Peter, o escravizado que sonha com a liberdade em Emancipation é só um herói de ação, alguém que a despeito das vagas gesticulações para sua fé em Deus — sendo apresentada como constante combustível de fortalecimento — não nos oferece percepção nova sobre, veja só, um ser humano forçado ao trabalho escravo.
Como qualquer filme em que, no automatismo, torcemos para que o herói de ação conquiste seu objetivo — a gente torce para que Toretto consiga arrastar um cofre pelas ruas do Rio de Janeiro, não é? —, queremos ver o final feliz de um Peter que então se junta ao exército de Lincoln para, literalmente, lutar por sua liberdade em meio a explosões e batalhas bagunçadas. Porém, dá para sentir a pressa do filme para a conclusão feliz, como se esta pudesse ser o consolo para as mais de duas horas em que nem Antoine Fuqua, nem o roteirista Bill Collage e, infelizmente, nem Will Smith, nos entregaram mais do que um filme exagerado, indeciso entre gêneros e incapaz de fazer justiça ao legado histórico que uma personalidade como Peter merecia.
Will Smith, ao construir sua carreira, sendo o representante de um grupo tão, mas tão pequeno — astros negros capazes de gerar bilheterias bilionárias — precisa ser muito preciso na escolha de seus filmes. Mas errou nesta.
Se a fotografia de Peter — cujo registro é reencenado no filme — serviu para mostrar que os escravizados eram pessoais reais com experiência reais, Emancipation se esforça para afastar esta verdade, na sua patética transformação de Peter em um quase super-herói.
Fonte: Omelete